A desigualdade de gêneros no mercado de trabalho é uma lacuna a ser superada por diferentes setores da sociedade e a maternidade é um dos fatores que corroboram para a disparidade entre homens e mulheres, especialmente nas posições de destaque, devido ao preconceito que essas mulheres enfrentam. A diferença de gênero chega a 72,6% no mercado de trabalho da América Latina, o que levaria 67 anos para chegar a equidade de gênero na força de trabalho, segundo o Relatório Global de Diferenças de Gênero 2022 do Fórum Econômico Mundial.
O setor de tecnologia é um dos que mais evidencia a disparidade: as mulheres ocupam apenas 24% dos cargos de liderança existentes contra 76% dos homens. O segmento também está entre os seis que mais contrataram significativamente mais homens do que mulheres nessas funções em 2021: tecnologia (30%), agricultura (28%), energia e cadeia de suprimentos e transporte (25%).
No meio dessa cultura, muitas mulheres acabam desistindo do setor ou adiam o sonho da maternidade para focar no trabalho. Porém, histórias inspiradoras de quem concilia filhos e carreira mostram formas de driblar os obstáculos e dão esperança a quem busca seguir o mesmo caminho. Confira a trajetória e o conselho de quatro dessas profissionais:
Unindo sonhos
A engenheira que atua como especialista em redes na RTM, principal hub integrador no mercado financeiro do Brasil, Aline Michele Lopes, sempre teve o sonho de ser mãe, porém nunca pensou em abrir mão de sua carreira. Quando sua filha Giovanna, hoje com 15 anos, nasceu, ela conta que, mesmo a gravidez sendo bastante planejada, ocorreram muitos desafios.
“Eu e meu ex-marido queríamos a gravidez e nos organizamos para isso. Eu tirei férias para poder ficar mais tempo amamentando, tentei me cercar de ajuda, mas, ainda assim, quando o bebê nasce, você percebe que todas as expectativas em termos de demanda são superadas”, conta.
Aline teve uma dificuldade ainda maior por não poder contar com a rede de apoio que esperava e ainda passar pelo luto durante a gravidez.
“Eu perdi minha mãe quando estava esperando a Giovanna e, tempos depois, minha sogra. Foi difícil. Meu apoio foi uma profissional que era excelente no cuidado com a Giovanna. É essencial contar com pessoas que dêem esse suporte, então é importante já pensar nisso ao decidir ter um filho”, aconselha.
Atuando em uma área de predominância masculina, Aline revela que, em alguns momentos se cobrou mais desempenho que esperado no trabalho para não haver a ideia de que ser mãe a prejudicava como profissional. Ela também comenta que ser mãe fez com que ela tivesse que fazer escolhas delicadas. Um exemplo foi a recusa de uma proposta para trabalhar no exterior, que teria impacto no afastamento de Giovanna do pai e na adaptação da filha num outro país, além da redução do tempo das duas juntas, uma vez que a proposta incluía muitas viagens.
“Hoje vemos as mulheres conquistando mais espaços, mas isso ainda é um desafio. O que eu aconselharia uma mulher que está começando no mercado de tecnologia e é mãe ou deseja ser é que ela acredite em si, não se cobre demais, mas não tenha medo de investir em sua carreira e nem abra mão do sonho da maternidade, se é o que ela deseja. O trabalho híbrido ou remoto pode ser uma boa oportunidade para conseguir conciliar melhor a maternidade com a carreira”, aponta.
“Essa vaga serve para o que eu busco para a minha vida?”
Rachel Filipov é head de marketing para a América Latina na Manhattan, uma empresa global de tecnologia para a cadeia de suprimentos e comércio unificado. Mãe de duas filhas, a Sara e a Mila, de 9 e 5 anos, ela divide a maternidade com a responsabilidade de gerar pipeline para uma grande companhia em diferentes países.
Hoje, Rachel tem flexibilidade para equilibrar vida profissional e pessoal, mas nem sempre foi assim. “Quando as meninas eram menores, eu e meu marido tínhamos que viajar muito a trabalho. No dia que eu recebi uma notificação da empresa aérea dizendo que eu tinha subido no status do programa de fidelidade pelo alto número de viagens foi que a minha ficha caiu, então resolvi parar de trabalhar. Fiquei um ano fora do mercado para me conhecer como mãe, já que eu nunca tinha me dado essa chance”, conta.
Quando fez a entrevista de emprego para trabalhar na Manhattan, um dos pontos de atenção era se o trabalho se adequaria às necessidades dela como mãe. “Fui questionada se eu tinha alguma red flag. Respondi que sou mãe solteira de segunda a sexta, porque meu marido viaja e fica em casa somente nos finais de semana, e que se eles não pudessem contratar alguém com esse perfil eu realmente não era a pessoa indicada para a vaga”. Para Rachel, estar em uma empresa de tecnologia adiciona alguns desafios quando se trata de explicar para as filhas o que é seu trabalho.
“Penso que seria mais divertido falar pra elas que eu trabalho cuidando de cachorros, vendendo brinquedos em lojas, ou fazendo qualquer coisa que elas consigam visualizar e imaginar a experiência. Mas tento incluí-las no meu dia a dia profissional sempre que posso. Também tento explicar que minha escolha por trabalhar, e não poder estar mais tempo com elas, não é focada no dinheiro. Sempre as lembro que eu gosto de fazer o que faço, trabalho duro, resolvo bastante problemas, e sou recompensada por isso. O dinheiro é uma consequência que nos permite viver melhor e fazer coisas legais juntas, mas não minha motivação principal”, conta.
Como conselho para as mulheres que desejam engravidar, mas têm receio quanto à carreira, Rachel indica pensar a longo prazo. “Se você sente a vontade de ser mãe, não deixe para trás esse objetivo por conta da carreira. Infelizmente existe uma janela biológica e se for necessário desacelerar pra cuidar da família, está tudo bem. Você vai trabalhar até os 65, 70 anos, focar nos seus filhos nesses primeiros 2, 5, 10 anos, não vai destruir sua carreira”.
Reviravolta na carreira e na vida pessoal
Edilene Hames sempre quis ser mãe. Depois de três anos de tentativas, a gravidez do Théo, que hoje tem 1 ano e 7 meses, foi um misto de alegria, medo e ansiedade. Formada em Ciências Contábeis e Administração, ela atua como Gerente Financeira na CashWay, techfin de Florianópolis/SC, e encontrou o acolhimento que precisava na empresa para equilibrar a maternidade com o trabalho.
“A gravidez veio na pandemia, então houve todo um stress e preocupação devido aos riscos do contágio pela Covid-19. A Cashway prontamente me liberou para o trabalho em home office, para evitar qualquer perigo para minha gestação”, conta.
Segundo ela, o nascimento do Théo foi uma reviravolta. “A impressão era que tinha me tirado da minha vida e colocado em outro planeta. Por mais que eu tivesse estudado e me preparado, o início foi muito desafiador. Quando voltei a trabalhar tive o apoio da minha sogra, que cuida com muito amor e zelo do Théo. O desafio maior mesmo é conciliar as tarefas e atividades que antes fazia facilmente. Estou sempre correndo para encaixar uma tarefa antes de buscar o Théo, ou agendando atividades nos horários que ele está dormindo”.
Para Edilene, mesmo com muita gente ao redor, a maternidade é uma experiência solitária. Por isso, é importante não deixar de pedir ajuda e se aproximar da rede de apoio. Ajustar a rotina também é essencial para conseguir dar conta de tudo.
“Meu conselho para as mamães que trabalham em empresas de tecnologia é tentar flexibilizar horários e usar o home office para ganhar tempo e encaixar atividades que não conseguiria se fosse até a empresa”.
Mesmo com os desafios, a experiência de ser mãe a ajudou a ver o mundo com mais leveza. “A maternidade me tornou uma pessoa muito melhor. Sou menos julgadora e mais paciente. Amo ter me tornado mãe, e ter noção dos verdadeiros valores na vida”.
Observe os sinais da cultura de empresa desde o processo seletivo
Grávida de três meses e já com uma filha de dois, Karine Figueiredo tinha o sonho da maternidade, mas deixar a profissão para isso nunca foi considerado. “Não era e nunca foi uma opção deixar de trabalhar”, diz a Head de Marketing da startup de retail media Newtail.
Sua primeira filha nasceu enquanto ocupava o mesmo cargo, mas durante a sua passagem por outra startup. “Depois da licença, você se pergunta: ‘Será que eu sou mesmo necessária? Você fica com receio, lê casos negativos e pensa: ‘Vai que acontece comigo?’”, conta Figueiredo, que afirma ter tido uma experiência positiva ao comunicar as duas gravidezes.
Às mulheres profissionais que têm o sonho de serem mães, deixa seu incentivo.
“Quatro ou seis meses é um tempo muito pequeno perto de tudo que você pode construir junto ao negócio”, conta Figueiredo, que passou cinco anos na última empresa.
“A maternidade fornece mais motivação e sensibilidade para lidar com desafios. Há pontos positivos que refletem no trabalho”. Seu conselho: observar sinais da cultura corporativa desde as primeiras entrevistas do processo seletivo.
“Você sente o nível de maturidade em relação a isso, consegue ver os sinais de uma cultura preconceituosa que pode te prejudicar não só como mãe, em uma futura gravidez, mas também como mulher, porque isso ressoa de outras formas”. Para ela, a confiança com o empregador é um divisor de águas na vida de pais e mães. “É essencial, porque é na hora dos imprevistos que isso é posto à prova”.
Forme uma rede de apoio na vida profissional e familiar
“Eu trabalhei até quinta-feira, 20h. Minha filha nasceu no dia seguinte”, conta Lilian Natal, diretora de marketing da Bossanova Investimentos, venture capital mais ativa da América Latina, ao lembrar sobre sua gravidez. No currículo, a executiva conta com passagens como Head em diferentes áreas da Distrito, plataforma de transformação digital para empresas, e ainda como fundadora de uma edtech.
Foi um curso de um mês no Vale do Silício, depois de engravidar aos 29 anos, enquanto ainda trabalhava no ramo de Turismo e Eventos, que a fez entender a profissão que queria seguir. Ao voltar para o Brasil, decidiu empreender e fundou com dois sócios um aplicativo gamificado de treinamento corporativo.
Durante um ano inteiro, seus dias passaram a ser divididos em cinco jornadas: trabalho, programa de aceleração, MBA, demandas da startup e maternidade. Na época, a filha já com quatro anos a acompanhava dos eventos e cursos aos coworkings.
“Nesses momentos, temos muito claro que formar um ser humano é mais importante do que qualquer coisa, porque ser mãe dá uma força que, muitas vezes, a gente nem sabe que tem. O que me manteve me movendo foi querer ser um exemplo para a minha filha”, compartilha.
O seu conselho para futuras mães empreendedoras é voltado à formação de uma rede de apoio, tanto no âmbito profissional quanto no familiar, e à procura por lugares de acolhimento.
“Se a pessoa que está ao seu lado não te apoia, as coisas não acontecem. Seja essa pessoa um (a) companheiro (a), amiga ou família”, defende Natal, que menciona a Comunidade de Startups de São Paulo, a Rede Mulher Empreendedora e B2Mammy como meios importantes na sua trajetória. “Me fizeram me conhecer como mulher na área de tecnologia, a não me sentir um peixe fora d’água”.